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O Barco Çaí

Aquele poderia ser um dia como outro qualquer, se não fosse o meu súbito encontro com aquela anciã de aparência frágil e cansada, que se colocou à minha frente. Na minha distração e voltada aos meus problemas, não percebi a sua aproximação. Calculei que ela pudesse ter uns noventa anos, já que não conseguia conceber que alguém tivesse mais idade ainda. Era magra, não muito curvada, mas as dobras de suas rugas e a boca sem dentes, parecendo estar entrando para dentro da mesma, fazia dela uma figura singular. Parecia ter saltado de algum livro de história do tempo da escravidão. Sim era uma senhora afrodescendente. Pondo-se à minha frente perguntou:

- Sabe se o Barco “Çaí” já chegou?

- Não senhora, não sei. É melhor perguntar a outra pessoa. - Respondi atônita, pois esta pergunta não me era estranha.

Sim, aos poucos fui me lembrando. Era uma história contada por meu marido. Segundo ele, este fato aconteceu antes do seu nascimento e lhe foi contada por seus pais. Certamente não podia tratar-se da mesma personagem, concluí; pois meu marido tinha então cinquenta e oito anos. Não, não podia ser. Agora vou contar à vocês leitores, o que me foi passado por ele:

Aconteceu no bairro de São Francisco em São Sebastião-SP. Na época era apenas um povoado, habitado só por pescadores e seus familiares. Como tal, eram conhecedores das marés e das épocas certas para se por ao mar e realizar as grandes pescarias. Sendo assim, naquele dia, o grande Barco “Çaí” partiu levando vários pescadores. Seus familiares foram até a praia para se despedirem e desejarem boa pesca a todos, só que não sabiam que o Barco “Çaí” jamais voltaria.

Quando se deram conta da realidade, as mulheres dos pescadores choraram suas viúvez e com o tempo voltaram a vida normal. Porém, entre elas havia uma que não se conformou, não aceitou e passou a esperar o marido na praia todo final de tarde.

Passaram-se os meses, os anos e a figura esguia daquela mulher era vista na praia deserta todos os dias, perguntando para todos que por ali passasse:

- Sabe se o Barco “Çaí” já chegou?

Barcos de pesca artesanal na Praia de São Francisco em São Sebastião -SP

Voltei para casa pensativa e tão logo cheguei, contei ao meu marido o estranho fato. Olhando para mim com um jeito maroto, ele se dirigiu até a copa e pegou uma taça. Em seguida disse:

- Você acaba de ganhar a taça da mentira. Pegue-a, é sua!

- Estou falando a verdade, era uma senhora muito idosa, acredite!

Dando uma sonora gargalhada ele retrucou:

- Impossível. Eu te contei esta história. E quando ela se passou, eu não tinha nem nascido e agora estou com quase sessenta anos. Além do mais, a mesma se passou longe daqui, na praia de São Francisco, em São Sebastião.

Não adiantava continuar argumentando. Ele estava convicto que eu estava mentindo. Me senti magoada, sim, mas tudo passa, inclusive o tempo. Passaram-se alguns meses e um belo dia ele entra em casa com aquele mesmo ar maroto e me diz:

- Ainda não acredito no que acabou de me acontecer!

- E o que foi que lhe aconteceu?

- Encontrei a senhora do Barco “Çaí”. Me perguntou se eu sabia se o Barco “Çaí” já voltou. Impressionante! E não acreditei em você.

E assim se passou mais algum tempo e em uma conversa com uma senhora que havia conhecido a pouco tempo, comentei este fato.

Ela risonha me disse: - A senhora conheceu a minha bisa. Ela tem 115 anos e de vez em quando escapa para a rua e pergunta a todo mundo se o Barco "Çaí” já voltou. Arregalei os olhos fitando-a:

- Nossa! Como este mundo é pequeno!. Então se trata da mesma personagem da estória contada pelos pais de meu marido, quando ele ainda era criança?.

- Sim, certamente. Meu avô, quando veio de mudança para Santos com a família, conseguiu convencê-la a vir com ele.

Sim, minha gente! Esta é certamente uma história de amor que virou loucura. A história de uma mulher que esperou seu amado por quase um século Estávamos atravessando a década de oitenta. Fiquei sabendo que ela veio a falecer no ano seguinte. E tenho certeza que na hora de sua morte, Deus na sua bondade infinita, transportou seu espírito até a praia de São Francisco, onde ela pôde ver seu amado chegando no Barco “Çaí”. O todo Poderoso como o Grande Artista do Universo, deve ter colocado como fundo uma música muito bonita. Talvez uma das músicas cantadas por Dorival Caymmi, que tão bem retrata a beleza e o encanto do mar. Aí então, seus espíritos, rejuvenescidos, livres e felizes, flutuaram rumo ao infinito...

 

(Onilde Siqueira Souza Pires)

 

Sobre a autora: Escritora, poetisa e autora do conto "A Noiva do Infinito", publicado pela Editora Scortecci no livro Nossas Histórias, Nossos Autores", Volume 1. Co-autora do livro "Alvo Fácil" também publicado pela Editora Scortecci, e é autora do livro infanto-juvenil “Autobiografia do Apolo”.

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